Eu sou ele assim como você é ele assim como você sou eu e nós somos todos juntos
Elementos performáticos e subversivos em Luther Blissett(Fábio Salvatti - DS CAPES; UDESC)
Sou um vírus altamente contagioso, e te contagiei.
de Mago Merlim para Madame Min,
em "A Espada é a Lei" de Walt DisneyO Teatro Municipal de Bolonha e seu superintendente Pablo Escobar sofreram uma tentativa de atentado no dia 24 de novembro de 1994. O ataque das cinqüenta pessoas que cercavam o prédio só não teve êxito maior porque um caminhão do serviço de limpeza urbana daquela cidade perturbou o campo psicomagnético formado no intuito de levantar as fundações do referido edifício e fazê-lo levitar. O motorista do caminhão gargalhou diante daquelas pessoas que canalizavam sua energia "omphálica" salmodiando um sonoro "Om" contra o teatro. Apesar do fracasso, afirmaram os organizadores do ataque que foram vistas as colunas do edifício vibrarem e uma parte do portão foi arrancada.
Esse ataque psíquico foi liderado por Luther Blissett, como parte das manifestações da "greve cósmica" de Bolonha naquele dia. As reivindicações da greve incluíam, dentre outras coisas, "o 'direito' de se insurgir contra o trabalho", "não à não-violência gratuita", "teletransporte público e gratuito" e "welfare without state" ("bem-estar social sem estado").
Luther Blissett é um personagem-metodologia. É uma criatura mitológica que opera na comunicação-guerrilha, na psicogeografia, no ativismo anti-copyright, numa radical crítica ao estado e ao sistema capitalista. Luther Blissett é um condivíduo. Qualquer um pode ser Luther Blissett, simplesmente declarando-se parte do projeto e assinando pelo nome coletivo de Luther Blissett. Isso faz com que a reputação desse herói, desse "Robin Hood" da era digital, seja desenvolvida por uma rede (uma network) de pessoas que acrescentam informações e intervêm subjetivamente em sua biografia. Opera-se uma mitopoese, isto é, a construção de um mito, uma lenda remanipulável constantemente, instrumentada por um "nome multiuso". "A idéia é criar uma 'situação aberta' na qual ninguém em particular é responsável. Alguns proponentes do conceito também defendem que isto é uma maneira de analisar praticamente, e botar abaixo, as noções ocidentais de identidade, individualidade, valor e verdade" (HOME, Stewart. Assalto à Cultura. apud BLISSETT, 2001. contracapa).
O surgimento do nome coletivo foi atribuído a Harry Kipper1, um artista inglês que teria proposto o Projeto Luther Blissett (aproveitando o nome de um zagueiro jamaicano que jogou pelo time do Milan na temporada de 1983-1984) como estratégia de resistência cultural em 1994. A partir de então desenvolveu-se uma rede indiscriminadamente aberta ao redor da idéia de Luther Blissett. Suas principais ações foram os "trotes de mídia". Notícias falsas, mas verossímeis, eram "plantadas" em jornais e logo em seguida assumidas por Blissett. Alguns exemplos:
Na primavera de 1994 começaram a chegar aos jornais de Bolonha uma série de cartas denunciando o aparecimento de entranhas de animais em ônibus, parques públicos e estacionamentos da cidade. Alguns transeuntes testemunharam o "estripamento" de um performer, que arrancou de sua camisa os intestinos de um bezerro, durante a simulação de um ataque epiléptico. Algumas semanas depois, após mais cartas, foram encontrados um cérebro bovino e um coração suíno no meio de uma apresentação de jovens católicos. Os jornalistas batizaram o fenômeno de "horrorismo", e páginas dos periódicos locais foram dedicadas ao assunto. No final do verão, Luther Blissett assumiu a autoria das cartas e da distribuição das entranhas, demonstrando o que se pode fazer com alguns selos e um pulinho no açougue.
O artista inglês Harry Kipper desapareceu durante a realização de uma performance em outubro de 1994. Sua intenção era cumprir um trajeto de bicicleta que escrevesse a palavra ART no mapa da Europa. No final do T, contudo, ele se perdera na Bósnia e seus amigos e familiares estavam preocupados. Decidiram publicar um cartaz reportando o desaparecimento, que logo chamou a atenção do programa televisivo Chi la Visto?, especializado em sensacionalizar buscas por pessoas desaparecidas. Uma equipe de jornalistas foi enviada para Bolonha, onde colheu depoimentos de seus amigos, fotos de Kipper, viu seus objetos pessoais, etc. Foram orientados para procurar em Údine, local onde o artista teria sido visto pela última vez. A versão foi confirmada, mais informações foram dadas aos jornalistas, inclusive o endereço londrino de Harry Kipper, para onde os jornalistas também se dirigiram. Poucos instantes antes do programa entrar no ar a farsa foi desfeita e Luther Blissett assumiu a ação em uma conferência na imprensa.
A cidade de Viterbo foi assolada entre 1996 e 1997 por uma legião de satanistas. A polícia local e a imprensa foram alertadas por telefonemas anônimos que as conduziram a restos de missas negras: velas, pentagramas, galos pretos e bugigangas satânicas. Após a publicação nos jornais, vários cidadãos enviaram testemunhos que confirmavam os indícios. Fundou-se um Comitê para a Salvaguarda da Moral, caçadores de satanistas que adquiriram espaço na imprensa. Com o pânico crescente, a Igreja foi forçada a se pronunciar contra as atividades obscuras na cidade. Em seguida, chegou à redação dos telejornais uma fita de vídeo que documentava um ritual. A imagem era de péssima qualidade, podia se ver ao longe um grupo de pessoas entoando um mantra e uma moça gritando. Todos os telejornais dedicaram amplo espaço à denúncia e exibiram o vídeo. Uma semana depois, a emissora TV 7 recebeu a versão integral da mesma gravação. Nessa, o cinegrafista se aproximava das figuras encapuzadas que participavam da missa negra: de repente elas arrancavam os capuzes e dançavam uma desenfreada tarantela ao redor de um cartaz de Luther Blissett. Desde as cartas, passando pela fundação do Comitê, até o vídeo, tudo fora forjado pelo coletivo.
A guerrilha de mídia adotada por Luther Blissett como estratégia está baseada na sabotagem da máquina comunicativa no poder. É uma impostura, um trabalho de ilusionismo que permite que Blissett mine as estruturas midiáticas como um vírus, infectando o sistema nervoso central dos meios de comunicação de massa.
A ação de guerrilha midiática sempre deve inspirar-se na realidade, no acontecido. A divulgação de notícias falsas, a fraude midiática, não pode basear-se somente na fantasia: é necessário modificar a realidade, isto é, (in)formá-la, mas sem deixar que o caçador de notícia perceba. Ele não deve ter condições de distinguir entre realidade e fantasia. É preciso deixá-lo acreditar que tem o controle absoluto sobre o material disponível. É necessário, enfim, explorar sua própria arrogância profissional. (BLISSETT, 2001. p. 33)
As fraudes de Blissett reúnem algo de lúdico, de anárquico, de gauche. A estrutura midiática se torna refém de seu próprio poder, que é redimensionado devido à ridicularização dos operadores do sistema. É uma tática de defesa contra a onipotência e onipresença da mídia no imaginário coletivo e em nossas vidas. Os resultados alcançados pelo Projeto Luther Blissett na Itália são exemplares. O medo que os jornalistas tinham de entrar em uma armadilha de Blissett chegou a ser tão forte que "suscitou gritos de 'é o lobo!', mesmo sem haver rastros do lobo". Como exemplo, podemos citar o caso de Naomi Campbell, que esteve incógnita em Bolonha para a realização de uma cirurgia estética. Quando esse boato chegou aos jornalistas do Il Resto de Carlino, periódico de orientação direitista, eles recearam ser mais um trote de Luther Blissett. A paranóia já os fazia incapazes de diferenciar a mentira da verdade.
Apesar de ter suas principais fileiras atuando na Itália, a partir dos Centri Sociali Occupati, o Projeto Luther Blissett ganhou projeção mundial, devido, principalmente à difusão por meio telemático. A internet demonstrou ser um meio fecundo para o processo mitopoético e potencialmente organizador de uma cultura underground subversiva mundial. Mas o que faz com que centenas, milhares de pessoas escolham adotar o mesmo pseudônimo, compartilhar a mesma reputação, assinar e reivindicar ações político-culturais, performances, escritos teóricos ou de ficção? A idéia que está na base do Projeto Luther Blissett é a de criar um fantasma, um herói popular, que lidere o movimento libertário para fora do underground. O mito de luta identificado em Blissett quer ser um mito lúdico, esperto, cativante, eficaz, de fato "pop", que divulga uma visão livre e feliz da vida e da luta de classes, longe dos erros/horrores do século XX. Por isso, Luther Blissett não está restrito a nenhum contexto específico. Devido à sua multiplicidade, pode estar mais próximo do que imaginamos.
Por exemplo, em 2001 houve um impasse entre a Reitoria da UFSC e um grupo de estudantes, que aproveitava uma sala abandonada nas dependências da Universidade para a realização de oficinas e apresentações de artes. Após a Reitoria cerrar as portas do local, recebeu uma carta, sugerindo uma solução para o impasse: uma partida de futebol, a se realizar no pátio da Universidade. Caso o time da Reitoria ganhasse, os estudantes abandonariam a construção. Se a vitória fosse dos alunos, a Reitoria deveria se comprometer em manter oficinas artísticas. O desafio estava assinado por Luther Blissett.
Um dos grupos originais do Projeto Luther Blissett, sediado em Bolonha, estabeleceu uma meta qüinqüenal para os desenvolvimentos do seu trabalho como Blissett. Em dezembro de 1999, após a publicação de um romance que se tornou best seller na Itália, intitulado Q, o grupo realizou um seppuku, isto é, um suicídio ritual, deixando de usar o nome Luther Blissett. Fundaram a Wu Ming Foundation, que mantém algumas das características Blissettianas, como a crítica feroz ao copyright, a manutenção de um posicionamento ácido e prático contra o capitalismo. A Wu Ming Foundation esteve vinculada ao movimento anti-globalização e auxiliou na criação mitopoética de manifestações como a de Gênova, em 2001, durante a reunião do G-8.
O seppuku do grupo de Bolonha, no entanto, não é uma diretriz. É apenas uma sugestão de procedimento para aqueles que comungam da experiência extrema da condividualidade em Luther Blissett. Como em I am the Walrus, canção dos Beatles que empresta versos para o título deste artigo, we are all together.
Luther Blissett é experimentação artística, midiática, intelectual, urbanística... em uma palavra, "espetacular". Luther Blissett é uma seita sem líderes nem hierarquias, na qual nenhum membro conhece o outro, na qual tudo pode acontecer, porque ninguém decide no lugar do outro. Cada coágulo temporário de personalidade de Luther Blissett basta a si mesmo, não precisa entrar em contato com nenhum outro... e se isso acontecer, quem realmente entrou em contato? Somente outra pessoa que afirma ser Luther Blissett: isso me torna invencível. Quem sou? Quantos sou? Qual é a minha atividade principal? Isso nem eu sei. No Estado de emergência, sou a única verdadeira emergência da qual vale a pena se ocupar. Será o pânico, e ninguém jamais poderá confessar nada. (BLISSETT, 2001. p. 259)
Bibliografia Saqueada
BLISSETT, Luther. Guerrilha psíquica. São Paulo: Conrad, 2001. col. Baderna
INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002. col. Baderna
SANT'ANNA, Antonio C. V. e SALVATTI, Fábio. "De Luther Blissett a Wu Ming". (entrevista com Roberto Bui). Disponível em <www.casthalia.com.br/casthaliamagazine/ casthaliamagazine4.htm> Acesso em 31 de março de 2003.
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1 A identidade do próprio Kipper é fantasiosa.