Astronautas de quem?
Imaginação e multidão em Itália nos dias do cacerolazo global
Por Wu Ming
É verdade que em Itália e no resto do planeta o 'movimento dos movimentos', embora tenha sido severamente afectado, sobreviveu às 'matanças' de 2001 (Goteborg, Génova, etc.) e recomeçou apesar da tentativa de desmantelamento via manu militari.
É verdade que nem sequer o pós 11 de Setembro e a filiação ideológica digna do Quinto Reich (falar do Quarto é já um anacronismo), conseguiram travar a participação de centenas de milhar de pessoas que, pelo contrário, encontraram na oposição à enduring war planetária mais uma razão para sair à rua e para se organizarem.
É verdade que milhões de refugiados da esquerda ex-'histórica' forçam as delineadas fronteiras deste novo movimento, variado e multiforme, reclamando argumentos e participação, ideias, gestos e palavras que lhes restituam a dignidade de oposição ao estado de coisas presente, mas também um princípio-esperança que lhes permita imaginar a sua transposição.
E é precisamente por isso que diante dos nossos próprios olhos está um primeiro problema, que se poderia escrever com maiúscula e que se poderia definir como o Problema do Imaginário. Ou melhor: o problema da relação do imaginário com a imaginação deste movimento, da representação de si mesmo e de um outro mundo possível ao qual se pretende aludir.
Até agora foi fundamentalmente um impulso ético, psicológico, moral (em alguns casos, especificamente religioso), o unificador do diálogo e da partilha das lutas. Tal facto deveu-se aos diferentes pontos de partida das várias almas do movimento e à sua conotação realmente global. Mas, a partir do momento em que este movimento surgiu como resposta à concretíssima materialidade dos problemas provocados pelo capitalismo, tornou-se impossível não enfrentar o problema da transposição do impulso ético e do alcance de uma difusa crítica materialística.
Isto não implica que se faça um 'balanço final', que se reduza a multiplicidade argumentativa que constitui a sua própria riqueza e novidade, mas será certamente necessário interrogarmo-nos sobre como representar e comunicar, primeiro a nós próprios, a partilha da colectiva precariedade existencial. Uma existência que conhece, claro está, macro-áreas geográficas de tutela parcial que, porém, se vão cada vez mais reduzindo, enquanto a precariedade ameaça também os reclusos 'de luxo' nas fortalezas do norte do planeta.
Até agora ninguém conseguiu interpretar a multidão. Quanto muito, como aconteceu em Génova, conseguiu-se evocá-la, sempre semi-conscientemente, que nem aprendizes de feiticeiro. Não é por acaso que, após Génova e depois da marcha Perugia - Assis, os eventos internacionais mais conseguidos tenham sido aqueles em que as realidades mais organizadas tenham investido menos energias e menos convicção (10 de Novembro contra a guerra, 19 de Janeiro contra a lei Bossi-Fini). O contrário também é verdade, cf. 'A Jornada da Desobediência' de 17 de Dezembro passado.
As realidades organizadas do movimento estão ainda demasiado prisioneiras de dois defeitos. Antes de tudo, do triunfalismo parcial, miopia trágica que leva a ver no reforço e na reprodução perpétua da própria 'parte' - do 'próprio' movimento dentro do mais amplo movimento dos movimentos - um necessário êxito. O que acarreta o risco de produzir lógicas vanguardísticas novecentistas, obsoletas segundo nos parece. Citando o Subcomandante Marcos: «Não saberíamos o que fazer com uma vanguarda que de tão avançada que é, jamais poderá ser alcançada por alguém». Ao invés, para ganhar a batalha do imaginário, é preciso libertarmo-nos do derrotismo, doença atávica da esquerda. Ou seja, o predomínio - no melhor dos casos - de um 'cristianíssimo' (absit iniuria) espírito de testemunho, do tema decoubertiano da 'participação' como elemento mais importante que a vitória; ou então - no pior dos casos, e felizmente de ocorrência mais escassa - de um hiper-radicalismo dogmático e palavroso que a um nível 'estratégico' privilegia uma invejável inacção e a um nível 'táctico' uma injúria telemática. O único conteúdo destes é a condenação - enquanto 'inadequada' ou 'reformista' - de qualquer campanha política ou forma de acção e, sobretudo, de qualquer inovação linguística e comunicativa.
E contudo é preciso saber vencer as batalhas e estar próximo das próprias vitórias concretas (mesmo parciais: mas, ao fim e ao cabo, que vitória é 'total'?). É preciso saber reconhecer as próprias vitórias e, se necessário, dar-lhes um novo nome e relançá-las, tendo sempre presente que a amplitude da audiência é mais vasta e maior que os números da praça.
Que pretende esta multidão? E a quem o pede?
Nós acreditamos que a multidão exprime uma necessidade de novos mitos fundadores.
Radicalmente novos, com a tónica posta sobre ambos os termos, tanto na necessária radicalidade (um regresso à origem, às origens), quanto na novidade (pós-novecentesca).
Para que um outro mundo seja possível, deverá ser possível imaginá-lo e torná-lo imaginável a muitas pessoas.
Não utilizaremos pontos de apoio 'imaterialistas' e pós-fordistas para afirmar que a questão do imaginário e a questão das bases materiais da crítica são exactamente a mesma questão. Dizemo-lo e basta. Para poder superar o testemunho é preciso reflectir sobre a composição social, técnica e política desta 'multidão' que nomeamos a cada passo e sobre que imaginário e mitos de luta transporta e reproduz.
Sem um imaginário de referência, sem uma narração 'aberta' e 'indefinidamente redefinível' nos quais seja possível participar e indagar livremente, o movimento não pode senão cansar-se em sedimentar a própria experiência, que é nova, até experimental e, em muitos aspectos, inédita. Não se trata de cristalizar tal epos, mas sim de partilhá-lo, torná-lo acessível, 'publicitá-lo', transformando-o numa eficaz arma cultural, potencialmente hegemónica e portanto vencedora, para além de simples testemunho.
Trata-se de descrever um percurso, um caminho constelado de perguntas, mas também de pontos de força e de fractura, de restos e saltos que permitiram chegar até aqui e continuar em frente.
É forçoso que aqui nos limitemos a indicar um primeiro nó de matéria mítica: a assim chamada 'anomalia italiana'. A tão estigmatizada 'ingovernabilidade'. E é a esta última que interessa voltar.
Malcolm X diferenciava os escravos afro-americanos entre 'pretos domésticos' [house negroes] e 'pretos dos campos' [field negroes]. Os primeiros viviam debaixo do mesmo tecto que os patrões, a sua mentalidade era mais esclavagista que a do próprio escravizador, diziam: 'a nossa plantação', 'a nossa casa', preocupavam-se quando o patrão adoecia, se havia um incêndio prodigalizavam-se para o apagar. Os segundos eram explorados nos campos, odiavam os patrões, quando o patrão adoecia rezavam para que morresse, se a fábrica se incendiava rezavam para que o vento soprasse mais forte. Tornando a aplicar esta distinção nos E.U.A. dos anos sessenta, Malcolm X distinguiu aqueles que diziam 'o nosso governo' daqueles que, simplesmente, diziam 'o governo'. 'Até ouvi alguém dizer 'os nossos astronautas'! Aquele preto passou-se da cabeça!'
Falou-se muito da Itália enquanto país turbulento, ingovernável de facto. A este propósito a esquerda italiana desenvolveu uma atitude xenófila e autoflagelatória, de fetichismo legalista, obedecendo assim ao diktat proveniente do capital mundial, a partir da Comissão Trilateral para frente. Mas o que significa ser 'ingovernável'? Segundo nos parece, significa que, por muito baixo que possamos descer, é impossível que nos reduzamos àquilo a que neste momento estão reduzidos os Estados Unidos (inúteis os ipse dixit, Chomsky e Gore Vidal: lemo-los a todos). Enfim, aquela é uma sociedade governável, onde parecem predominar os 'pretos domésticos'. Contudo, em Itália, ainda muita gente reza para que o vento sopre mais forte e que se está completamente lixando para os 'nossos astronautas'. Existe um persistente desfasamento entre o país representado e o país real. E, neste preciso momento, mais do que nunca. Há já muito tempo que se define a Itália como 'a América do Sul da Europa' e, ao usar-se esta expressão, dá-se-lhe uma conotação racista, ou seja, somos incivilizados, bananas, fazemos com que o primeiro caudillo que passe nos cague na cabeça. Esquece-se que é a América Latina o lugar de violentas contradições, mas também da incessante mitopoiesi da esquerda, esquece-se que é um universo onde nem a mais atroz das violências fez quebrar os inumeráveis 'fios vermelhos'. É um universo onde a resistência continua sendo underground, reemergindo sob novas formas, do zapatismo à mobilização pelo pequeno Elian Gonzales, da Colômbia ao cacerolazo argentino. O mesmo é válido para a Itália, cuja esquerda - também aquela que tem horror ao terceiromundismo - tem muitas ligações com aquelas do sub continente mestizo, desde os tempos de Garibaldi. Também aqui o mito se sedimenta, exactamente como na América do Sul, e será ele a alavanca para destravar o impasse.
O pior é que a atitude auto-difamatória é filtrada, pelo menos em parte, pela esquerda antagonista. Tende-se a mitificar movimentos e grupos da Europa do Norte ou da América do Norte que não conseguem mobilizar nem 10% das pessoas que nós mobilizamos.
Viajando percebe-se que as camaradas e os camaradas de outros países olham para a Itália com admiração. À parte da recente táctica da 'desobediência civil protegida', exportada com um certo sucesso, diga-se que:
- Génova e Perugia - Assis foram as duas maiores manifestações de movimento do Planeta. Em Seattle estavam 70.000 pessoas e foi um boom. O mesmo vale para as 60.000 pessoas do Quebeque. Em Londres e Berlim lembram-se como um grande sucesso as 20.000 pessoas que saíram à rua e fala-se de manifestações nacionais em grandes capitais mundiais.
- O ainda em constituição New York Social Forum é composto por gente que se espanta quando ouve falar dos Social Forum italianos, que a muitos de nós soa a coisa pouca e indizivelmente entediante.
- A mobilização contra os centros de detenção destinados a migrantes 'clandestinos' prossegue há tantos anos em toda a Europa, mas nunca ninguém conseguiu irromper por um CPT [Centro de Permanência Temporária] dentro e desmontá-lo peça a peça como aconteceu em Bolonha.
- Em nenhum outro país os centros socais autogeridos existem tal qual os conhecemos, nem tão pouco com o impacto sobre o território que aqui consideramos quase previsível. Onde existiram houve uma grande limpeza (cf. Alemanha e Holanda). Em Espanha existe um ou outro, mas sem a influência cultural dos nossos. Até há dois anos atrás em Londres existia somente um, o 121 Centre de Brixton, e era como o Rossio metido na Betesga!
Poderíamos citar dezenas de exemplos, tirados mais ou menos ao acaso da história dos últimos cinquenta anos. Em Itália, a época de '68 durou mais de cinco anos. Aqui existiu o maior partido comunista do Ocidente e isto significou muito, para o bem e para o mal. Aqui foram desenvolvidos os filões mais inovadores do marxismo 'herético' contemporâneo, que puderam florescer e - pelo menos em parte - puderam reescrever o léxico da política, também graças ao fall-out da reflexão gramsciana sobre a 'hegemonia'.
E foi por ter controlado esta maré inquieta que a Itália se tornou - e é já um estereótipo - 'laboratório da repressão' e da 'prevenção', o lugar onde se experimentavam e se experimentam métodos que veremos depois aplicados no resto do mundo (v. a Estratégia da Tensão).
A isto junta-se o facto de que, na fase presente, a Itália se encontra como sendo realmente, mutatis mutandis, a Argentina da Europa: um país onde o capital não legal detém o benefício político; onde as instituições estão em guerra contra elas próprias (executivo vs. magistratura); onde à crise de credibilidade e fiabilidade do governo no plano internacional se responde com uma crise irreversível de representatividade da oposição no plano interno; um país tão paradoxal quanto paradoxalmente privado de 'alternativas' plausíveis; e no qual um movimento de massas fortemente empenhado (e ameaçado) que sai à rua alude, pelo menos simbolicamente, a um novo poder constituinte.
Obrigatoriamente limitamo-nos a expor factos, não indagamos as profundezas da História à procura de motivações.
A passagem de século entregou-nos um movimento radicalmente descontínuo. Cada resistência local fala, reconduz-se e inspira milhares de outros nós que revestem o inteiro planeta. Centenas de milhar de seres sensíveis, em animalesca transumância para uma salvação possível, advertem de coração que só falando de novo uns com os outros, sentindo-nos irmãos, de um continente ao outro, em espécie e em admiração, lhes pode restituir a única possibilidade que resta. Urgem as narrações abertas e unânimes, as histórias que viajam de boca em boca, as canções que permitem reconhecermo-nos onde quer que estejamos. Não existem bruxos em ligação directa com a multidão para compor o mantra. O contrário é verdadeiro: o mantra da multidão canta um fluxo incessante, uma maré inquieta e efervescente. Devemos atingir, pescar, distribuir, contar. E, no fundo, pouco mais. Pretender a dignidade, para todos.
Somente sobre estas bases se pode erguer o novo mito fundador, a nova auto-representação reclamada por esta multidão a viva voz.