COPYRIGHT
E MAREMOTO
Wu Ming 1, outubro 2002
Atualmente existe um amplo movimento de protesto e transformação
social em grande parte do planeta. Ele possui um potencial enorme,
mas ainda não está completamente consciente disso. Embora sua
origem seja antiga, só se manifestou recentemente, aparecendo
em várias ocasiões sob os refletores da mídia, porém trabalhando
dia a dia longe deles. É formado por multidões e singularidades,
por retículas capilares no território. Cavalga as mais recentes
inovações tecnológicas. As definições cunhadas por seus adversários
ficam-lhe pequenas. Logo será impossível pará-lo e a repressão
nada poderá contra ele.
É aquilo que o poder econômico chama "pirataria".
É o movimento real que suprime o estado de coisas existente.
Desde que - a não mais de três séculos - se impôs a crença na
propriedade intelectual, os movimentos underground e "alternativos"
e as vanguardas mais radicais a tem criticado em nome do "plágio"
criativo, da estética do cut-up e do "sampling", da filosofia
"do-it-yourself". Do mais moderno ao mais antigo se vai do hip-hop
ao punk ao proto-surrealista Lautréamont ("O plágio é necessário.
O progresso o implica. Toma a frase de um autor, se serve de suas
expressões, elimina uma idéia falsa, a substitui pela idéia justa").
Atualmente essa vanguarda é de massas.
Durante dezenas de milênios a civilização humana prescindiu do
copyright, do mesmo modo que prescindiu de outros falsos axiomas
parecidos, como a "centralidade do mercado" ou o "crescimento
ilimitado". Se houvesse existido a propriedade intelectual, a
humanidade não haveria conhecido a epopéia de Gilgamesh, o Mahabharata
e o Ramayana, a Ilíada e a Odisséia, o Popol Vuh, a Bíblia e o
Corão, as lendas do Graal e do ciclo arturiano, o Orlando Apaixonado
e o Orlando Furioso, Gargantua e Pantagruel, todos eles felizes
produtos de um amplo processo de mistura e combinação, re-escritura
e transformação, isto é, de "plágio", unido a uma livre difusão
e a exibições diretas (sem a interferência dos inspetores da Società
Italiana degli Autori ed Editori).
Até pouco tempo, as paliçadas dos "enclosures" culturais impunham
uma visão limitada, e logo chegou a Internet. Agora a dinamite
dos bits por segundo leva aos ares esses recintos, e podemos empreender
aventuradas excursões em selvas de signos e clareiras iluminadas
pela lua. A cada noite e a cada dia milhões de pessoas, sozinhas
ou coletivamente, cercam/violam/rechaçam o copyright. Fazem-no
apropriando-se das tecnologias digitais de compressão (MP3, Mpge
etc.), distribuição (redes telemáticas) e reprodução de dados
(masterizadores, scanners). Tecnologias que suprimem a distinção
entre "original" e "cópia". Usam redes telemáticas peer-to-peer
(descentralizadas, "de igual para igual") para compartilhar os
dados de seus próprios discos rígidos. Desviam-se com astúcia
de qualquer obstáculo técnico ou legislativo. Surpreendem no contrapé
as multinacionais do entretenimento erodindo seus (até agora)
excessivos ganhos. Como é natural, causam grandes dificuldades
àqueles que administram os chamados "direitos autorais" (Bernardo
Iovene mostrou como eles os administram em sua investigação para
o Report da RAI de 4 de outubro de 2001, cujo texto está disponível
no endereço: http://www.report.rai.it/2liv.asp?s=82).
Não estamos falando da "pirataria" gerida pelo crime organizado,
divisão extralegal do capitalismo não menos deslocada e ofegante
do que a legal pela extensão da "pirataria" autogestionada e de
massas. Falo da democratização geral do acesso às artes e aos
produtos do engenho, processo que salta as barreiras geográficas
e sociais. Digamos claramente: barreira de classe (devo fornecer
algum dado sobre o preço dos CDs?).
Esse processo está mudando o aspecto da indústria cultural mundial,
mas não se limita a isso. Os "piratas" debilitam o inimigo e ampliam
as margens de manobra das correntes mais políticas do movimento:
nos referimos aos que produzem e difundem o "software livre" (programas
de "fonte aberta" livremente modificáveis pelos usuários), aos
que querem estender a cada vez mais setores da cultura as licenças
"copyleft" (que permitem a reprodução e distribuição das obras
sob condição de que sejam "abertas"), aos que querem tornar de
"domínio público" fármacos indispensáveis à saúde, a quem rechaça
a apropriação, o registro e a frankeinsteinização de espécies
vegetais e seqüências genéticas etc. etc.
O conflito entre anti-copyright e copyright expressa na sua forma
mais imediata a contradição fundamental do sistema capitalista:
a que se dá entre forças produtivas e relações de produção/propriedade.
Ao chegar a um certo nível, o desenvolvimento das primeiras põem
inevitavelmente em crise as segundas. As mesmas corporações que
vendem samplers, fotocopiadoras, scanners e masterizadores controlam
a indústria global do entretenimento, e se descobrem prejudicadas
pelo uso de tais instrumentos. A serpente morde sua cauda e logo
instiga os deputados para que legislem contra a autofagia.
A conseqüente reação em cadeia de paradoxos e episódios grotescos
nos permite compreender que terminou para sempre uma fase da cultura,
e que leis mais duras não serão suficientes para deter uma dinâmica
social já iniciada e envolvente. O que está se modificando é a
relação entre produção e consumo da cultura, o que alude a questões
ainda mais amplas: o regime de propriedade de produtos do intelecto
geral, o estatuto jurídico e a representação política do "trabalho
cognitivo" etc.
De qualquer modo, o movimento real se orienta a superar toda a
legislação sobre a propriedade intelectual e a reescrevê-la desde
o início. Já foram colocadas as pedras angulares sobre as quais
reedificar um verdadeiro "direito dos autores", que realmente
leve em conta como funciona a criação, quer dizer, por osmose,
mistura, contágio, "plágio". Muitas vezes, legisladores e forças
da ordem tropeçam nessas pedras e machucam os joelhos.
A open source e o copyleft se estendem atualmente muito além da
programação de software: as "licenças abertas" estão em toda parte,
e tendencialmente podem se converter no paradigma do novo modo
de produção que liberte finalmente a cooperação social (já existente
e visivelmente posta em prática) do controle parasitário, da expropriação
e da "renda" em benefício de grandes potentados industriais e
corporativos.
A força do copyleft deriva do fato de ser uma inovação jurídica
vinda de baixo que supera a mera "pirataria", enfatizando a pars
construens do movimento real. Na prática, as leis vigentes
sobre o copyright (padronizadas pela Convenção de Berna de 1971,
praticamente o Pleistoceno) estão sendo pervertidas em relação
a sua função original e, em vez de obstacularizá-la, se convertem
em garantia da livre circulação. O coletivo Wu Ming - do qual
faço parte - contribui a esse movimento inserindo em seus livros
a seguinte locução (sem dúvida aperfeiçoável): "Permitida a reprodução
parcial ou total da obra e sua difusão por via telemática para
uso pessoal dos leitores, sob condição de que não seja com fins
comerciais". O que significa que a difusão deve permanecer gratuita...
sob pena de se pagar os direitos correspondentes.
Para quem quiser saber mais, a revista New Scientist ofereceu
recentemente um excelente quadro da situação em um longo artigo,
publicado por sua vez sob "licença aberta" (http://www.newscientist.com/hottopics/copyleft/copyleftart.jsp).
Eliminar uma falsa idéia, substituí-la por uma justa. Essa vanguarda
é um saudável "retorno ao antigo": estamos abandonando a "cultura
de massas" da era industrial (centralizada, normatizada, unívoca,
obsessiva pela atribuição do autor, regulada por mil sofismas)
para adentrarmos em uma dimensão produtiva que, em um nível de
desenvolvimento mais alto, apresenta mais do que algumas afinidades
com a cultura popular (excêntrica, disforme, horizontal, baseada
no "plágio", regulada pelo menor número de leis possível).
As leis vigentes sobre o copyright (entre as quais a preparadísima
lei italiana de dezembro de 2000) não levam em conta o "copyleft":
na hora de legislar, o Parlamento ignorava por completo sua existência,
como puderam confirmar os produtores de software livre (comparados
sic et simpliciter aos "piratas") em diversos encontros com deputados.
Como é óbvio, dada a atual composição das Câmaras italianas, não
se pode esperar nada mais que uma diabólica continuidade do erro,
a estupidez e a repressão. Suas senhorias não se dão conta de
que, abaixo da superfície desse mar em que eles só vêem piratas
e barcos de guerra, o fundo está se abrindo. Também na esquerda,
os que não querem aguçar a vista e os ouvidos, e propõem soluções
fora de época, de "reformismo" tímido (diminuir o IVA* do preço
dos CDs etc.), podem se dar conta demasiado tarde do maremoto
e serem envolvidos pela onda.
* Imposto sobre o Valor Adjunto.
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