1954, UMA NOVELA POP-AUTONOMISTA
Uma re:entre:vista com Wu Ming
por Snafu <msdeseriis@tiscali.it>
traduzido para o português por xM0N7Y^o-o^C4N751Nx <xmontyxcantsinx@yahoo.com.br> (à excepção das duas primeras perguntas e respostas, traduzidas por Ned Ludd)
[originalmente feita como contribuição ao jornal Make-world #2, que foi distribuído no acampamento internacional No-Border em Estrasburgo (julho de 2002)]
1954, uma década de pós-guerra. O conflito coreano acabou de abalar o mundo, os franceses estão se retirando da Indochina, a caça-às-bruxas de McCarthy está quase no fim, a KGB é fundada em Moscou. Novos estilos de vida e desejos por liberdade se debatem sob o cobertor da Guerra Fria. Essa é a essência de 54, a novela escrita pelo coletivo Wu Ming ("Sem nome") de Bolonha, recentemente publicada na Itália (Einaudi, Turim, 666 páginas, 15 euros). 54 fala sobre a relação dialética entre aqueles dois impérios (que se tornariam um, como Negri & Hardt colocariam) e uma humanidade múltipla que sonha em avançar para além da era moderna e da disciplina fordista no espaço de trabalho.
A Itália dos anos 1950 ainda é uma nação rural, como poucas áreas industriais, a maioria sob reconstrução. Escapar da vida cotidiana e do trabalho é utopia, ainda mais quando não há sequer emprego. Pierre Capponi pode ser um ás da dança filuzzi e atrair multidões aos salões de dança de Bolonha; ele pode até mesmo conquistar Angela, a jovem esposa do camarada Odoacre Montroni (um líder mítico da federação local do Partido Comunista Italiano); e ainda assim ele não pode enlaçar-se a ela, sendo um garçom de um ponto de encontro das classes trabalhadoras, e dificilmente consegue quebrar o galho.
Steve "Concreto" Zollo é um assassino profissional de Nova Iorque e o braço direito de Lucky Luciano; na Baía Hudson ele costumava fazer "botas de concreto" para os inimigos de Luciano. A gaiola de Zollo não é nem Bolonha, nem a pobreza; sua gaiola é chamada Nápoles, onde mulheres são voluptuosas mas parecem "camponesas vestidas para a festa", onde os negócios (contrabando internacional) são excelentes mas os becos são fedorentos e barulhentos e tudo gruda em você como papel pega-moscas.
O que têm não é suficiente para conseguir outra vida. A outra vida é somente sonhos abastecidos por filmes e desejos não concedidos, como o de ser Cary Grant. Cary Grant, o homem perfeito, o ás do estilo que veio do nada. Se você não pode ser Cary Grant, pelo menos você pode parecer com ele, mesmo se você trabalha em um açougue, ou encontrá-lo por acaso e tentar contar aos seus amigos, mas ninguém acredita em você. Você também pode tentar vender o lote de heroína que você roubou do Chefe dos Chefes, de forma a mudar sua vida e ir para um país distante.
Além do desejo de escapar, há um desígnio negro, o longo braço da História. O M16 (a Inteligência britânica) tenta envolver Car Grant em um filme sobre o Marechal Tito, um projeto que pode ajudar a Iugoslávia a se distanciar de Moscou. A recém-nascida KGB, dirigida pelo General Serov, tenta sabotar a missão. Nesse meio tempo, a televisão chega à Itália e a RAI (a rede de TV estatal) começa a transmitir.
Famílias e gangues agarram-se entre si para conseguir ligar um aparelho de TV americano, um glorioso McGuffin Eletric Deluxe que está sempre desligado mas cuja tela reflete os atos de comédia que acontecem à sua frente. Não funciona porque não há nada dentro dele, nada além de um lote de heroína roubada. 54 é um olhar preciso e afiado em um ano para se viver perigosamente. É uma história de espionagem que acontece na área do Mediterrâneo (de Marselha a Nápoles, de Gênova à Croácia), cujo roteiro desdobra-se na afiada lâmina da História maior, como aconteceu em Q - o best-seller de Luther Blissett, que iniciou o projeto Wu Ming - ou em uma ficção pós-moderna inspirada em Pynchon.
54 também é um livro perseverante que fala sobre a Resistência, tanto histórica quanto individual. A Resistência não é só a defesa coletiva de idéias inalienáveis, mas também um mito progressivo que aponta para o desejo de viver com dignidade.
Nessa novela, a América e a Europa vivem lado a lado. A América é a nova fronteira, o país que herdou as tarefas da Revolução Francesa de libertar a humanidade e fazê-la feliz (está até escrito na Constituição). A Itália e os italianos estão na janela, e assistem a vinda da televisão e de todas as comodidades do consumo. Eles não percebem que já estão sendo observados por esses aparelhos.
Josip Broz "Tito" (1892-1980)P: Em uma recente entrevista, você afirma que "a cultura pop é um pré-requisito para o comunism". Cary Grant e David Bowie - o protagonista de Havana Glam, uma novela escrita por Wu Ming 5 - seriam "ícones ao avesso, moldados pelos desejos das multidões". Ainda assim, Bowie e Grant entraram no star system através de um processo de seleção e filtragem precisos (industriais). Vivendo em novelas como 54 ou Havana Glam, e entrando em contato com a humanidade que sua e fede, esses santos libertam parte de sua imortaliadde. O comunismo passa por algum tipo de "compartilhamento de fama"? Ou precisamos fabricar ícones novos, descentralizados, peer-to-peer?
R: Uhm... não deveríamos falar sobre ficção de gênero? :-)
Sim, nós afirmamos que a cultura popular ocidental do século XX (que agora está se tornando algo completamente diferente, e em certo sentido mais complexa para se tirar proveito) estava muitas vezes mais próxima do socialismo do que os regimes "socialistas" orientais do século XX conseguiram estar. Até mesmo acrescentamos que a série de imagens Mao Tsé Tung de Andy Warhol foi mais importante para a revolução do que os retratos oficiais de Mao Tsé Tung agitados por maoístas em manifestações. Essa visão tem a ver com os nossos múltiplos backgrounds: a noção de "hegemonia cultural" de Antonio Gramsci, o marxismo autonomista (Toni Negri e outras na linha) e o fato de alguns de nós serem ex-Mods, ex-Skinheads e ex-Punks. Você sabe, o marxismo autonomista enfatiza o poder criativo e revolucionário dos próprios trabalhadores, à parte ao Estado e aos partidos. Ao lado do típico pessimismo da esquerda, os autonomistas podem parecer sonhadores otimistas, enxergando a luta e a vitória onde outros enxergam apatia e derrota. Enquanto a maioria das pessoas (em todo o espectro político) vê o capital como agente e o trabalho como reagente, os autonomistas vêem o capital como o lado reativo da relação. É claro, por "trabalho" queremos dizer o trabalho vivo na fábrica social, isto é, todo o poder de criação e cooperação social, o qual é necessário ao capital mas não é completamente domável. A vida emerge continuamente por debaixo, dos escombros. Ainda achamos que um novo e justo modo de produção somente pode ser estabelecido através da reapropriação das redes existentes de cooperação social. O socialismo deve ser construído a partir da natureza coletiva presente na produção capitalista. É por isso que, de modo diferente de pessoas como os situacionistas (que eram obcecados com a "recuperação" e o espetáculo"), nós sempre colocamos a ênfase no lado criativo da relação entre capital e classe. Damos a ênfase no poder das multidões. A produção da cultura pop (não traçamos uma linha divisória clara entre o "underground" e o "mainstream" nesse caso) foi um processo coletivo durante o qual as fronteiras de comunidades abertas e sempre mutantes eram constantemente retraçadas, subculturas constantemente remodelavam-se em torno de mitos. Seria melhor que compreendêssemos quais "pré-requisitos do comunismo" estavam em funcionamento nesse processo ao invés de ficarmos acreditando que milhões de pessoas estavam passando por uma lavagem cerebral. Hoje em dia, muitas coisas estão mudando para melhor no que diz respeito à reapropriação, ou melhor, "de-propriação" da cultura. Violação de direitos autorais, pirataria de CDs, violação de DVDs, trocas de P2P, socialização de MP3s, OCRs, plunderphonics, software livre... Há um levantamento geral, galões de suor frio estão escorrendo pelos corpos dos patrões. As instituições da propriedade intelectual estão caindo em pedaços, as pessoas estão as detonando. É um maravilhoso processo popular, e está mais próximo do socialismo do que a China jamais esteve.P: Eu estava me referindo mais à aura (nos termos de Walter Benjamin) que circunda os ícones pop. O sistema de estrelas cria ícones que são capazes de refletir os desejos das pessoas, de produzir identificação, novos "estilos de vida" e novas subculturas. Nesse sentido, Luther Blissett - considerado como um mito descentralizado vindo de baixo para cima - nunca terá a mesma aura de David Bowie ou Gary Grant. É uma questão de ausência de distância ou o que? Como podemos criar histórias populares, que as pessoas possam usar para reinventar suas próprias vidas? RPG e culturas do-it-yourself são a única resposta, ou um coletivo de escritores como o seu pode sugerir algo diferente?
R: Podemos falar só por nós mesmos: nós jogamos RPG (o que é afinal um coletivo de ficção escrevendo no fim do dia?), e uma subcultura DIY prospera em torno de nós. Tentamos manipular gêneros literários para criar ficção popular. Usamos o termo "popular" no seu sentido original, como nas línguas latinas (italiano, espanhol, francês...), onde ela significa "pertencente ao povo" ou "feito pelo povo". Pense nas músicas folclóricas que parecem não ter autor, elas são creditadas como "popular" ou como "tradicional". O ponto em que estamos é este: queremos eliminar mitos como a Autoria, o Gênio, a Inspiração etc. No que diz respeito à "aura", ficamos do lado de Benjamin e não de Adorno, que era um chato total e até mesmo escreveu comentários racistas sobre músicos de jazz. O fato de que artefatos culturais perderam sua aura de poder (isto é, seu caráter aristocrático e elitista) foi essencialmente positivo, permitiu que inúmeras pessoas se envolvessem mais na remanipulação da cultura. Benjamin clamava pela democratização da cultura, em certo sentido ele previu a cultura DIY e a cultura P2P. Todos deveriam ler A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica , é ainda muito atual e absolutamente brilhante, e um bom antídoto contra a intoxicação niilista/pós-situacionista.
P: Em relação a Q, em 54 micro-histórias cruzam continuamente o quadro da história `oficial'. Assim, esse quadro nunca é acidental ou rígido. A novela dá ao leitor a chance de ler o jogo da guerra fria não somente como uma partida binária, mas também como um desafio dentro de um desafio, com muitas opções deixadas em aberto e indeterminadas. O que aconteceria se Tito tivesse decidido-se por um filme com Cary Grant? E se Dijlas tivesse influenciado a política de Tito? Se a história é tão rica em estratos e possibilidades, existem algumas meadas que vocês usaram para juntar todos os estratos. Você pode explicar o que são elas e como você as selecionou?
R: Desconfiamos que o nosso método permite que as histórias contem a si mesmas e reproduzam a si mesmas por partenogênese (auto-fertilização). É claro que já um ponto inicial, acreditamos que a história não é nem uma linha reta nem um ciclo, é 'catastrófica', `fractal': os conflitos produzem bifurcações e descontinuidades a toda hora. A história como ciência dificilmente consegue lidar com tais descontinuidades, e parece que toda investigação racional acaba produzindo ainda mais sombras inquietantes. Essas áreas lúgubres são as intersecções entre a história e a mitologia. O único modo de explorá-las é jogando jogos com a história.
Veja bem, não escrevemos o tipo usual de ficção especulativa "ucrônica", como The Man In The High Castle de P. K. Dick (com exceção de Havana Glam, que é uma disserção de ficção científica sobre o glam rock dos anos 1970). Nós preferimos investigar a `possibilidade' de uma bifurcação na história, o momento onde a história `poderia ir' em uma direção diferente. Não estamos interessados em ilustrar essa bifurcação ou suas consequências.
Nós costumamos pensar em um período histórico que pareça fascinante para nós, e então passamos meses vendo microfilmes, lendo fontes, fazendo pesquisa, anotando montes de coisas, e então o brainstorm vêm e dura várias semanas. Temos quase que a lucinações. A pesquisa histórica é como o peyote para nós. Depois de nos recuperarmos de todos os choques e flashbacks, começamos a escrever.
P: O espelho é um dos temas nucleares da novela. Uma gloriosa televisão, a McGuffin, viaja através da novela, "uma testemunha muda de toda sorte de violências e imundície". Todos querem ver as primeiras transmissões televisionadas mas ninguém sabe como ligar a TV. Mas eles não percebem que já estão na tela, na forma de sombras pálidas refletidas. Como podemos comparar essa jornada pelos sonhos dos anos 1950 com as banais realidades-ficção contemporâneas como "Big Brother"? Qual é a função da televisão hoje e quem cuida de nossos sonhos e pesadelos?
R: A Itália dos anos 1950 era a aurora da era da TV, as pessoas queriam sonhar porque a situação estava brava, havia violência em todo lugar.
Os 1990 (começamos a trabalhar em 54 em 1999) foram o laboratório do semio-fascismo abastecido pelo "Big Brother" e propelido pelas redes que transformou uma jornada de quarenta anos pelos sonhos no seu avesso, refeltindo todos os pesadelos ("os criminosos estão em todo lugar!", "o que todos esses marroquinos e albaneses de merda querem de nós?") e crenças apodrecidas ("os comunistas voltaram!"), produzindo um vasto montante de violência simbólica que só pode ser comparada com o mccartismo dos anos 1950 nos EUA. No ano passado essa violência simbólica ajudou a gangue de Berlusconi a tomar o governo. Agora eles estão tentando empurrar o país de volta aos 1950 apagando todas as mudanças e reformas que os movimentos sociais (trabalhadores, estudantes, feministas, ativistas pelos direitos dos gays e da liberdade de expressão, etc.) conquistaram desde 1968. A Itália está circuitando o circuito. Depois do 11/09, todo o Ocidente parece estar fazendo o mesmo.
No entanto, nós pensamos que a história não é uma linha reta nem um ciclo, e não há forma de os poderes estabelecidos captarem toda a sua complexidade e planejarem tudo. Como em nossa novela, a Itália dos dias atuais se espelha na Itália dos anos 1950, e ainda assim não é mais o mesmo país. Berlusconi e seus colegas per derão seus tronos - não, suas celas. Seu regime cairá mais cedo do que todos esperam, e o mundo inteiro aprenderá com isso.