Lester BangsQuer saber quem foi Lester Bangs?
Wu Ming 1 - Prefácio à edição italiana do livro Reações Psicóticas
Lançamento no Brasil da Conrad Editora



Lester con maglietta Detroit SucksPra ser sincero, estou tão alienado e enojado a ponto de me perguntar se quero mesmo fazer algo nos próximos anos. Veja bem, a questão é: tudo está ficando como a revista People. Todo o rádio, toda a imprensa, tudo está ficando assim, até o ramo editorial. Ontem, falando com meu empresário, perguntei a ele: "Você acha que, continuando assim, a única coisa vendável vai ser a biografia-putaria de uma celebridade?" E ele respondeu: "Não sei." Entende? Estou aqui e me pergunto se, como escritor, não seria melhor mandar tudo isso às favas. Lógico que não vou ficar fazendo lamentações piegas, porque, como já falei, sei que me dei bem, não preciso acordar cedo e trabalhar numa fábrica das nove às cinco ou qualquer coisa assim. E ganho lá minhas cortesias e tantas outras coisas, portanto, não causo pena em ninguém. Mas ao mesmo tempo, todas as pessoas que conheço estão completamente alienadas, de saco cheio, enojadas com tudo, e sei que boa parte daqueles que trabalham na mídia e nos impingem essas coisas está tão alienada quanto o público. O público compra só porque não lhe é oferecida outra coisa. E, pessoalmente, eu me pergunto quando as pessoas vão começar a dizer: "Não! Eu me recuso, não quero mais isso!"

Lester Bangs, entrevista a News Blimp, 1980


Santo beatnik, Lester. Crítico maldito, louco gênio do jornalismo gonzo, viveu velozmente de arte e de amor, encarnou o espírito do rock'n'roll, morreu jovem e pobre, etc. etc.
Do outro lado do Atlântico, depois de anos desses clichês, há quem reflita sobre Lester de maneira nova. Aqui, no entanto, somos obrigados a atravessar essa fase do zero, como se ele tivesse acabado de morrer, pois bem poucos sabem quem é esse tal de Lester Bangs.
Lester teve pouca sorte na Itália. Artigos em obscuros fanzines que dá pra contar nos dedos de uma mão e poucas traduções caninas, aliás, que rosnam para o leitor, de tão feias. Nada mais.
Portanto, é preciso fazer um pouco de trabalho sujo. Os clichês estão rigorosamente entre aspas: Leslie Conway Bangs, vulgo "Lester" (1949-1982), o crítico de rock mais influente ("seminal") "de todos os tempos" (não existe essa competição, nunca existiu). Estilo influenciado por Kerouac e Burroughs. No final dos anos 60, juntamente com Richard Meltzer e Nick Tosches ("the Noise Boys") empenha-se vigorosamente em "lançar os alicerces" da crítica "militante" do rock ("quatro meses e meio antes de qualquer outro", diria depois Meltzer).
Em poucos anos, Lester entra no Olimpo do New Journalism, a saber: Tom Wolfe, Gay Talese, George Plimpton, ainda mais jovem do que todos esses e em posição prejudicada, no "subgênero" gonzo (narrações picarescas repletas de substâncias psicotrópicas), capitaneado por Hunter S. Thompson, e dentro do gonzo, num subgênero ulterior, o escrever rock (que não é simplesmente o escrever sobre rock).
Escritor compulsivo e pan-atlântico, é publicado por Rolling Stone, Creem, NME e pelo Village Voice. Canta em vários grupos e grava alguns discos (enquanto escrevo, estou ouvindo "Jook Savages on the Brazos", Lester Bangs and the Delinquents, mp3 a 128k encontrado numa indigente página na Web).
No mundo de língua inglesa, Lester é "lenda" canonizada na antologia póstuma que você tem em mãos (1987, editada por Greil Marcus), no filme Quase Famosos, de Cameron Crowe (2000, Lester interpretado por Philip Seymour Hoffman), na biografia Let It Blurt, escrita por Jim DeRogatis (2000) e numa antologia mais recente, Mainlines, Blood Feasts and Bad Taste (2003, editada por John Morthland). Últimos itens de trivia: Lester aparece numa canção do REM, "It's The End Of The World etc.". Ele é mencionado junto com Leonard Bernstein, Leonid Brejnev e Lenny Bruce; o cenário é uma festa de aniversário. E há também o Ramones, com "It's Not My Place". O nome de Lester aparece junto com os de Phil Spector, Jack Nicholson e Clint Eastwood.
Curioso que ambos os grupos tenham mencionado Lester para falar do mundo e do mundano, em versos compostos por nomes de VIPs. VIP é tudo o que Lester não é, aliás, é o eterno outsider, hostil a qualquer door policy e a leões-de-chácara. Em vez de entrar no clube "exclusivo", ele se une aos excluídos na calçada, fraterniza com os rejeitados pelo dress code.
Lester tem/encarna uma idéia comunitária, democrática, solidarística do rock'n'roll. Inimigo de toda pretensão e qualquer solipsismo, troca sopapos com o zeitgeist dos anos 70 nos EUA (e no rock), um período de Restauração como o que se seguiu ao Congresso de Viena: peruconas empoadas, oligopólio, culto às celebridades, virtuosismo "progressivo" como fim em si mesmo... "Pena que você perdeu a época do rock", diz Lester a William Miller no início de Quase Famosos.
Lester contrapõe-se à Restauração explorando, avançando às cegas, vagando na noite em que todo o rock é cinza. Propunha "outros conceitos de beleza", glorifica "o barulho atroz" até quase compartilhar o hobby de Stan Murch, personagem dos romances de Donald E. Westlake. Murch compra e ouve somente discos com barulhos de carros de corrida: aceleram, engatam marchas, diminuem, chegam perto, se afastam novamente. Ouvir sinfonias dentro de Metal Machine Music representa o mood mais sombrio da época. Pelo menos Lou Reed está convencido de que as pôs ali.
Lester Bangs al liceoSabe escrever, esse Lester. Quando criança, escrevia continuações para as histórias de Verne, Stevenson, Dumas. No início da adolescência, mergulhou na literatura "juvenil", sobretudo ficção científica, space operas, estilo vetado por sua mãe, testemunha de Jeová: a Bíblia não fala de vida em outros planetas, portanto ela não existe, e fim de papo. A descoberta da Beat Generation teve o previsível efeito desinibidor. Falo das coisas de sempre: escrita automática, fome de experiências, tendência a "se apaixonar instantaneamente" (pelo mundo, por uma mulher, por uma canção), vontade de escrever "como um dançarino que rebola a bunda", tristeza quando o mundo frustra as expectativas.
Mas concentre tudo isso na resenha de um LP, três laudas no máximo, e surge algo diferente, o estilo que abre para Lester as portas da Rolling Stone. Naquelas páginas, ele escreve o necrológio de Kerouac, e o ciclo poderia até se fechar.
Mas não se fecha. Depois de algum tempo, a Rolling Stone fica pequena para ele. Além disso, Jann Wenner o demite (ele não fala bem dos discos dos VIPs), e ei-lo em Detroit, berço da Creem, revista mais free-form, que o deixa escrever à rédeas soltas. Naquelas páginas, impõe o uso das expressões "punk rock" e "heavy metal". Escreve sobre Mingus e free jazz: Albert Ayler, o último de Coltrane. Recupera a British Invasion linha-dura (Troggs e Yardbirds) e o garage rock mais obscuro, como o do Count Five. Analisa o rock-blues maleitoso e capenga à Captain Beefheart. Idolatra o Velvet Underground, ou melhor, Lou Reed: rios de nanquim sobre sua "relação de amor/ódio". Transforma Stooges e MC5 em dois cavalos de batalha. Vai dormir toda noite bêbado, com Iggy ou Black Sabbath nos fones.
A metade dos anos 70 o encontra de saco bem cheio: há uma seca no mundo do rock. Ele se muda para Nova York em busca de uma nascente, e a encontra; arma sua barraca no oásis do CBGB's: Ramones, Television, Voidoids, Patti Smith Group.
Aos poucos, se afasta da escrita espontânea, se aproxima mais do modelo do escritor "lapidar", que lima, apaga, reescreve, burila. Não chega ao suplício de um Fenoglio , mas tampouco escreve num rolo de papel, à On the Road. Não está sozinho nisso: Richard Meltzer afirma que já está escrevendo "mais devagar do que merda congelada".
A "grande trapaça do rock'n'roll" é o enésimo escaldamento de seu espírito. "A cada década, um auto-embuste", assim ele resume sua própria vida. Gemendo, percorre as ruas de Manhattan e indaga sobre as mortes de Sid & Nancy. Descobre que faz parte do exército dos carnífices.
Tenta ir para o Texas, mas muda de idéia. Quer se desintoxicar do álcool, do speed e do romilar. Nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos está também Lou Reed. A era do barato de rebelde/"maldito" acabou, ou ao menos deveria ter acabado. Certas coisas são divertidas quando escritas por Bukowski (às vezes, nem sempre), mas escritas por qualquer um dos milhares de imitadores espalhados pelo globo... O mercado da atenção está saturado e repleto de dejà entendus. O rebelde/"maldito" é cordeiro de sacrifício para playboyzinhos que lhe dão corda e vivem, por meio dele, transgressões por procuração. No fim, a besta-punk volta pro papai, e esse, também, é um clichê nauseabundo, tanto que dá nojo enunciá-lo.
"Chega dessa bobagem de amar a morte, a pessoa tem o dever de tirar o melhor da vida", escreve Lester. Alguns o liqüidam com a palavra-tabu: "moralista". Cada vez mais, assomam em sua prosa palavras como "decência" e "integridade".
O "niilismo" é o inimigo e é legal ter coração, mas começam os anos 80, década mais para anti-social do que para o contrário. Começa a era do videoclipe e da MTV, traficante de celebridades desmerecidas. "O videotape é frio", diz Lester. Assim também pensa Jack Horner em Boogie Nights: "Se parece merda e tem cheiro de merda, então deve ser merda".
Lester fala de ir para o México para escrever "o seu romance", e parece não agüentar mais o rock. No entanto, durante um incêndio, depois de sair de casa de cuecas, pensa melhor e volta pra dentro correndo. Para salvar o quê? O disco Metal Box, do PIL. Em seguida, morre.
Não no incêndio, que fique bem claro. De causas desconhecidas. Dizem que teria sido culpa do Darvon, um tranqüilizante. Sei lá. Muitos anos depois, Jim DeRogatis mostraria a um especialista o relatório da autópsia. "Apressado e superficial", diz o relatório sobre o relatório.
Lester Bangs negli ultimi tempiA crítica ao "culto de Lester" começa logo. "No dia seguinte à sua morte, muitos tentaram mostrar que ele ladrava, mas não mordia" (Meltzer). Confunde-se o estilo de Lester com as poças de nanquim dos muitos imitadores, que não entenderam nada sobre ele. "Não imitem a mim", era o conselho que dava aos críticos de rock aspirantes. De fato, não é essa a herança de Lester. E qual seria, então?
Alguns anos atrás, um personagem da boemia bolonhesa utilizava, com fins excusos, a seguinte frase de introdução: "Fale-me um pouco de mim. Você pode se expressar com suas próprias palavras". Isso lembra uma brincadeira famosa, talvez de Cochi Ponzoni : "Sabia que o senhor sempre foi meu grande admirador?"
O "rockstar", a "diva", a "celebridade" nos ordenam que falemos deles, fazem-no com sua telepresença e sua propaganda comercial (aquele hype que, de acordo com Lester, era "o inimigo número 1"). A indústria cultural põe a obra em segundo plano em relação à personagem, vende esta em detrimento daquela. O Autor se torna Autoridade, e passa justamente a dar ordens.
Lester trava uma guerrilha incessante para levar de volta ao centro da reflexão a música, o opus, e redimensionar aqueles que a tocam. Com razão, considera o artista um trâmite, um intermediário, o portador de um testemunho, alguém que cumpre uma função social. A imagem do "rockstar" é o êxito do ato de autonomizar a testemunha em respeito ao testemunho que ela traz. O culto da celebridade é um "fetichismo do intermediário".
Falando do Led Zeppelin, dos Stones, de Elvis, Lester cartografava (às vezes literalmente) os graus de separação entre artista e público. Os vários Presleys, Jaggers e Plants viam a comunidade humana se afastar às margens de círculos concêntricos cada vez mais amplos.
Várias vezes, no texto bangsiano, recorre-se à metáfora do rockstar como aquele ou aquela que constrói seu próprio campo de concentração. Foi o que tentou dizer Roger Waters em The Wall: há algo de fascista no rock. O show de rock como comício nazista (In the Flesh) e a impossibilidade de sair do mecanismo: "Stop! / Quero ir para casa, / tirar este uniforme e sair do show / Mas espero nesta cela porque preciso saber: / fui eu o culpado todo este tempo?".
Não era por acaso que Lester usava expressões como "fascismo hedonista" e "diversão forçada". A obrigação de parecer feliz é típica das sociedades totalitárias, a sociedade de consumo é uma delas, sem dúvida, e quanto ao consumo dos jovens, não existe âmbito no qual o totalitarismo seja mais denso e coloidal.
Lester com certeza assinaria embaixo das observações do filósofo e psicanalista Miguel Benasayag: "Quando seguimos as instruções e fazemos de tudo para chegar àquilo que nos foi proposto como modelo de felicidade, ficamos duplamente infelizes, porque o resultado esperado não vem. A famosa frase ‘ele tem tudo para ser feliz’ não significa nada. Não existe um ‘tudo’ objetivo do qual possa emergir a felicidade. Não devemos esquecer que as imagens identificatórias são também disciplinadoras. Em nome da felicidade, damos forma a uma sociedade fortemente disciplinada [...] A atual busca da felicidade é liberticida e destruidora, porque é vivida no nível individual, como se ao redor dela não existisse mais nada."
"Um rockstar é apenas uma pessoa", repetia Lester. Sentia rancor em relação ao punk por não ter cumprido sua promessa, por não ter removido as barreiras. Em seguida, o hardcore teve um forte ímpeto igualitário, mas Lester morreu ao raiar desse movimento. Em todo caso, o hardcore também perdeu seu ímpeto propulsor, tornando-se sectário e niilista ou degenerando em música frívola e dissimulada.
E o que será que Lester diria da figura do DJ, tornada objeto de uma insensata reverência, mais diva do que muitos rockstars? O cara que põe os discos! Não resta dúvida de que isso representa uma traição aos assuntos igualitários, horizontais e do-it-yourself que estão na base da explosão house e techno entre os anos 80 e 90. E a crítica do rock? O culto à celebridade a danificou seriamente, hoje é principalmente um acessório do consumo, salvo poucas exceções.
Felizmente, o próprio consumo está mudando, as velhas modalidades estão sendo varridas do mapa, a indústria fonográfica precisa mudar, ou vai cair morta. O artista mal-acostumado não pode mais viver de renda, precisa se sacudir, suar a camisa, redescobrir a humildade. Na prática, gastar sola de sapato e tocar, voltar a ser um trovador itinerante, um contador de histórias... o portador de um testemunho. Isso pode derrubar as barreiras, ou torná-las contornáveis, morte vestigial de uma época passada.
Talvez o peer-to-peer esteja concluindo o trabalho iniciado pelo punk.
Enquanto um potencial de libertação se debate para se expressar, a velha cultura hesita na decadência, a liturgia do rock está cada vez menos crível e mais mal-ajambrada. O Oasis já era uma caricatura; o que dizer, hoje, do Libertines? Continuamos empacados nas poses de rebeldes e bonitões tenebrosos, meio século depois que o primeiro verme abocanhou o cadáver de James Dean? Jon Spencer pode até ser bom, mas ele pensa que é Elvis, e Elvis já era um bundão, que dirá, então, seus imitadores tardios. Resumindo, os rockstars continuam mais ridículos do que nunca, com 20 anos de idade já são dinossauros, com 30 já estão prontos para o paleontólogo.
Num contexto como esse, a mensagem e a atitude de Lester Bangs voltam, atuais, finalmente libertas da camisa-de-força dos estereótipos "malditistas".
Não existe ocasião melhor para conhecer Lester. Quem se aproxima dele pela primeira vez, que tire a energia para as batalhas do cotidiano e a força para dizer aqueles "nãos" que, hoje mais do que ontem, são imprescindíveis.

Wu Ming 1, setembro de 2004