Folha (Ilustrada), São Paulo, sábado, 4 de Maio de 2002:

 

"-A Inquisição mal sabe quem eu sou. De você, não sabe nada, e
certamente nem suspeita que somos muitos. Não se preocupe. Continue
dizendo só o meu nome, é o único que os irmãos devem conhecer."
de Q - O Caçador de Hereges, de Luther Blissett


TODOS OS NOMES...
Primeiro romance do misterioso Luther Blissett é lançado no Brasil;
assim como os autores, protagonista é um "múltiplo"

DIEGO ASSIS
DA REDAÇÃO


Lutero, Müntzer, Rothmann, Calvino, Pole, Ticiano, Morus... Nomes que fariam a Igreja Católica tremer durante a primeira metade do século 16 serviram, às vésperas das comemorações do jubileu cristão, de personagens da última das investidas de um nome igualmente incômodo para as autoridades italianas: o de Luther Blissett.
Três anos depois de seu lançamento na Itália, "Q - O Caçador de Hereges", primeiro romance do coletivo sediado em Bolonha responsável por uma série de provocações e peças pregadas na mídia italiana desde meados da década de 90, chega ao Brasil.
Assim como o grupo -que prefere manter seus nomes em segredo-, o estudante de teologia da Universidade de Wittenberg, que narra suas aventuras na Europa da Contra-Reforma, assume ao longo das quase 600 páginas de "Q" uma série de diferentes identidades. "Metzger, Niemanson, Jost, Boekbinder, Lot. Tantos e um. Os que eu fui. Tantos e um. Um qualquer", escreve.
Troca-se de nome como se troca de camisa. Grosso modo, essa é a segunda lição de Luther Blissett. Incessantemente perseguido pelos príncipes católicos, especialmente por Qòelet, "fiel observador" de Gianpietro Carafa (mais tarde, o papa Paulo 4º), o protagonista do romance torna-se uma lenda em todos os lugares por que passa -e dos quais desaparece.
Adepto do anabatismo, facção radical e libertária dos primórdios do protestantismo, aparece sempre à sombra da história em fatos como o massacre de camponeses em Frankenhausen, passando pela fundação do Reino de Sião, em Münster, até a distribuição de textos calvinistas em Veneza.
Bem articulado, com uma linguagem direta e um enredo de intrigas digno de um "O Nome da Rosa" -seus autores garantem: "Não somos o Umberto Eco"-, "Q - O Caçador de Hereges" tornou-se um dos maiores best-sellers na Itália à época de seu lançamento, promovido pela Einaudi.
Publicado na Espanha, pela Mondadori, e agora no Brasil, pela Conrad, o romance é obrigado, por exigência de seus autores, a carregar uma marca incomum: "É consentida a reprodução, parcial ou total desta obra, e sua difusão por via telemática para uso pessoal dos leitores, desde que não seja com fins comerciais".
Avesso a entrevistas, Roberto Bui, um dos quatro escritores de "Q" e autor de "Guy Debord Está Realmente Morto", um dos textos inaugurais do Luther Blissett, aceitou falar à Folha por e-mail sobre o projeto, "suicidado" meses após a publicação do romance na Itália e rebatizado como "Wu-Ming" (Sem Nome, em chinês).

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Q - O CAÇADOR DE HEREGES" - Roberto Bui, do Luther Blissett, nega que projeto tenha sido inventado por escritor italiano
"Não assistimos às aulas de Umberto Eco"
DA REDAÇÃO


Leia a seguir entrevista com o italiano Roberto Bui, co-autor de "Q - O Caçador de Hereges". Por exigência dele, todas as respostas serão dadas em nome do coletivo Wu-Ming. (DIEGO ASSIS)

Folha - "Q" tem um ritmo bastante fluido, uma mudança constante de personagens e cenários. Quais foram suas influências?

Wu-Ming - Primeiramente os livros de James Ellroy, cujas construções foram praticamente plagiadas em "Q". Depois, autores latino-americanos como Paco Ignacio Taibo 2º e Daniel Chavarria.

Folha - Uma das condições para publicar seus livros é a impressão de uma advertência contrária aos direitos autorais. Como impor isso a grandes editoras?

Wu-Ming - A lógica do copyright tem de ser desafiada onde ela existir, na barriga da besta. Não faria sentido, político ou cultural, adotarmos uma prática marginal para os "poucos privilegiados" do underground esnobe. De qualquer forma, mantemos uma clara distinção entre os royalties -isto é, nosso percentual sobre cada edição vendida- e o direito do leitor de reproduzir a obra. Você pode scannear, digitar e colocar em seu site para outras pessoas baixarem de graça. Isso é
possível até em nosso site. Mas, se você fizer as pessoas pagarem por isso, aí, sim, vamos processá-lo.

Folha - Como foi escrever esse romance a quatro mãos?

Wu-Ming - Teria levado dez anos para cada um de nós fazermos toda a pesquisa histórica necessária para escrever algo como "Q". Em grupo, levou três anos.

Folha - Qual a relação desse processo com o conceito de linguagem tamariana, do seriado "Star Trek"?

Wu-Ming
- Os tamarianos se comunicam por meio de narrativas, de histórias compactas, de parábolas, em suma, de mitos. Construção de mitos, eis o que temos feito desde o início dos anos 90.

Folha - Existe alguma diferença entre os personagens "reais" e os "míticos" em "Q"?

Wu-Ming - Todos os nomes que você leu podem ser encontrados nas crônicas originais da época.

Folha - É possível traçar uma fronteira entre ficção e realidade no romance?

Wu-Ming - De jeito nenhum.

Folha - Luther Blissett, Harry Kipper, Wu-Ming. Qual é a importância de um nome?

Wu-Ming - Ninguém sabe realmente o que é um nome.

Folha - Por que vocês se escondem atrás de uma identidade múltipla? Tem certeza de que não é o Umberto Eco?

Wu-Ming - Não nos escondemos. Já falamos em público uma centena de vezes. Só não permitimos câmeras no recinto. Simplesmente não somos palhaços. Um certo Andrea Ridolfi redigiu um panfleto, em 1997, relacionando Luther Blissett a uma criatura de grupos judaico-maçônicos, anti-Cristo, antieuropeus etc. De acordo com ele, uma leitura detalhada (isto é, paranóica) dos trabalhos de Eco seria suficiente para perceber que foi Eco quem inventou Blissett, uma espécie de Frankenstein saído do departamento de semiologia. Na verdade, nenhum de nós Luther Blissett baseados em Bolonha assistimos às aulas dele.

Folha - Até que ponto ações promovidas na internet podem afetar eventos exteriores?

Wu-Ming - Afetam muito. O novo movimento global anticapitalista, nascido das manifestações de Seattle em 1999, não teria sido possível sem a internet.


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Q - O CAÇADOR DE HEREGES. Autor: Luther Blissett. Lançamento: Conrad
Editora. Quanto: R$ 55 (598 págs.).
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Algumas das ações "assinadas" pelo grupo


1994 - Centenas de cartas chegam aos jornais de Bolonha comunicando o achado de entranhas de animais em lugares públicos da cidade. A imprensa dedica páginas de crônicas aos acontecimentos. Meses depois, a descoberta: todas as cartas eram falsas, enviadas por um grupo que se autodenominava Luther Blissett

1995 - Famoso programa italiano recebe a notícia do desaparecimento de um certo Harry Kipper. A produção manda uma equipe verificar a história e colhe os depoimentos de vários "amigos de Kipper", que dão informações sobre sua personalidade e levam a equipe a lugares frequentados pelo desaparecido. Minutos antes de a reportagem ir ao ar, a fraude é desmascarada

1996 - A editora Mondadori lança um livro assinado por Luther Blissett. "net@generation" foi organizado por Giuseppe Genna, jornalista que teria recebido instruções do "múltiplo" para compor a obra apenas pela internet. No dia em que chega às livrarias, o livro é desautorizado por Luther Blissett nas páginas dos jornais "La Repubblica" e "Il Manifesto".
Não passava de uma série de "documentos irreconhecíveis escritos por adolescentes bêbados" e de entrevistas falsas retiradas da própria rede

1997 - Em Viterbo começam a chegar à polícia ligações anônimas alertando sobre a possível realização de missas negras na cidade. Os jornais também são comunicados, inclusive da suspeita de que os praticantes teriam relação com a polícia local. Em seguida, uma fita de vídeo chega às TVs locais com imagens de um ritual satânico. Todas dão a notícia e algumas exibem o vídeo. Uma semana depois, nova versão da fita chega à TV 7, agora com novas cenas: ao final do "ritual", as figuras tiram seus
capuzes, dançam tarantela e mostram um pôster de Luther Blissett

1997 - Luther Blisset publica "Lasciate che i Bimbi", livro em que analisa a pedofilia como uma desculpa para um processo de caça às bruxas. A obra, lançada pela Castelvecchi, se torna um escândalo e é retirada das livrarias

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Fonte: "Guerrilha Psíquica", Luther Blissett, Conrad, 2001
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O mito é a mensagem

DA REDAÇÃO


Graças à sua imaterialidade e ao uso imprevisível dos diversos meios de expressão -de manifestos a HQs, de performances de rua a aparições na televisão-, o Projeto Luther Blissett, inaugurado na primavera de 1994 em algum lugar da Europa, conseguiu sobreviver até hoje em países como Espanha, França, Inglaterra e Brasil mesmo após a renúncia simbólica ("seppuku") de seus fundadores de Bolonha ao nome.
Assim como os zapatistas de Chiapas, liderados pelo subcomandante Marcos -outra identidade que pode ser assumida por mais de uma pessoa-, os envolvidos no projeto perceberam na internet uma das ferramentas mais eficientes nos dias de hoje tanto para a convocação de pessoas quanto para a disseminação de idéias e de mitos no mundo globalizado.
Além de aparecer em programas de televisão, reportagens de jornais, panfletos distribuídos na Bienal de Veneza de 1997 e até selos de correio, o rosto gerado por computador de Luther Blissett tem-se espalhado -e transformado- diariamente pela rede desde então, numa espécie de culto à figura de um dos primeiros ícones literalmente virtuais do século 21.
Seu xará de carne e osso parece não ter ficado muito honrado com a fama póstuma. Ex-atacante do Milan, da seleção inglesa de futebol e atual auxiliar técnico do clube inglês Watford, o jamaicano Luther Blissett -sim, ele existe- nega qualquer relação com o movimento italiano e, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que não concederia entrevista sobre o assunto.
Em textos divulgados na internet, os responsáveis (?) pela escolha do nome afirmam que teria a ver com a discriminação racial que Blissett teria sofrido nos anos em que jogou no Milan.
O fato é que, após a publicação de "Q", seus autores também não são mais Luther Blissett. Desde janeiro de 2000, atendem pelo nome de Wu-Ming, definindo-se como uma "empresa política autônoma" dedicada à narrativa. "54", seu romance mais recente, chegou às livrarias italianas pela Einaudi e promete uma nova rodada de surpresas. (DA)